bolo de mel da madeira
Doces Portugueses

Bolo de mel da Madeira

Uma peculiar análise desta iguaria:

           O bolo de mel da Madeira tem em sua composição elementos que remontam o paladar da era medieval, traçando seu caminho de influencia inglesa, pitadas das especiarias das Índias trazidas pelos navegadores e a própria matéria-prima cultivada em solo ilhéu. Antes de analisar essa receita que atravessa séculos, vamos começar definindo seus ingredientes básicos:

Farinha de trigo + Açúcar branco + Mel de cana + Vinho Madeira + Leite + Manteiga +

 Banha de porco + Ovos + Fermento + Canela + Cravo + Noz Moscada + Erva Doce (Funcho)+

Limão Siciliano + Laranja + Nozes + Passas + Cidra + Amêndoas

*alguns ingredientes podem não estar inclusos na sua receita, e outros podem estar faltando. Cada família tem a sua própria versão, que gira em torno desses sabores e aromas.

bolo de mel da madeira no natal

Origem

       Segundo o Museu Etnográfico da Madeira (Ribeira Brava) o bolo de mel tem origem numa receita de convento franciscano masculino de Monchique, no Algarve. De fato, existem muitos doces naquela região que utilizam os mesmos ingredientes (mas com uma intensa presença de figos). Sua confecção teria começado com a povoação no século XV e terá se aprimorado conforme os séculos, sem deixarmos de contar com a mão dos ingleses, que influenciaram muitas tradições na ilha, desde o bordado à culinária, principalmente na era vitoriana.

nossa senhora da conceição
limpeza da casa madeirense para o natal

A tradição, quando e como?

         Tradicionalmente se confecciona o bolo de mel no dia 8 de Dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição (Padroeira de Portugal e uma das santas mais adoradas antes do século XX) dando inicio aos preparativos de Natal, e deixando tempo suficiente para o bolo estar perfeito para consumo no dia 25. Outra tradição é partir o bolo feito no ano anterior! O Engenho da Calheta mantém este costume realizando um evento todo Janeiro para partir um bolo de mel gigante, de 50kg! Parte-se os pedaços com as mãos, mas se você sofre de perfeccionismo como eu, nada te impede de cortá-lo com a faca, e degustá-lo acompanhado de licores da festa ou Vinho Madeira. É presença indispensável na mesa do Natal madeirense!

bolo de MEL? 🍯🐝

   Muitos brasileiros acham, no primeiro contato, que o bolo é feito com mel de abelha, e até chegam a comparar seu gosto com pão de mel. Porém, a realidade é outra: ele é feito com MEL DE CANA-DE-AÇÚCAR. Apesar do Brasil ter uma vasta história do cultivo dessa planta, o processo de refinamento é inferior do feito na Madeira, resultando dois subprodutos diferentes: mel-de-cana & melado. Como não é possível importar, (ou pelo menos ninguém tentou ainda), no Brasil o substituímos pelo melado, mesmo diferindo bastante em sabor, cor e viscosidade.

pão de mel versus bolo de mel

O mel-de-cana é castanho escuro, quase preto, fino, com intenso sabor frutado, e maiores propriedades e nutrientes, tais como: cobre, magnésio e ferro (podendo até sentir o gosto metálico no final). Por isso nem sequer cristaliza em baixas temperaturas (dentro da geladeira por exemplo). Enquanto que o melado é muito mais claro, espesso e sabe a puro açúcar, além de ficar muito duro na geladeira, igual a um caramelo. Na foto podemos diferenciar claramente as gotas do mel de abelha, melado e mel de cana.

Por que não chamamos de Bolo de Melado?

        Primeiro porque não é certo mudar o nome tradicional de uma receita, mesmo que seja mais fácil para o nosso público brasileiro entender… Segundo porque a palavra melado não é originária de Portugal. A palavra melado é um estrangeirismo adotado dos países hispânicos que fazem fronteira com o Brasil. A terminologia açucareira se desenvolveu nas Ilhas da Madeira e das Canárias, regiões onde portugueses e espanhóis aplicaram com sucesso as técnicas de cultivo da cana-de-açúcar aprendidas com italianos sicilianos, e antes disso, árabes.

Ingredientes Secos

O trigo, plantado com sucesso na região, era moído e transformado em farinha, nos diversos moinhos espalhados pelas freguesias. Além da alimentação era utilizado para outro fim: após a retirada dos grãos, sobrava a palha alta, que era transformada nos clássicos telhados de colmo das casas “de Santana” (antigamente todas as casas tinham essa formatação, não só as do concelho de Santana).

O açúcar-branco deve ser um ingrediente dispensável (não obrigatório) da receita original. Porquê? Como o bolo de mel é um doce tão antigo quanto medievo, os camponeses não teriam acesso a esse produto extremamente refinado, que era presença somente nas mesas de reis, da corte e burguesia. O açúcar era considerado o ouro branco, e portanto, sua produção mais voltada para exportação. Faz sentido que o mel-de-cana fosse primordialmente o único açúcar da receita.

O fermento, como bicarbonato de sódio, ou apenas soda, seria comprado na venda, também sendo um ingrediente de evolução da receita, ou seja, não pertencia a ela originalmente. A soda ajuda o bolo a ficar mais moreno, além de crescer mais rápido, reduzindo o tempo de cozimento.

Ingredientes Molhados

Reis da liga, os ovos são ingredientes primordiais de receitas conventuais. Apesar disso, os doces madeirenses em nada se parecem com aqueles os ditos “doces portugueses” que estamos tão acostumados, cheios de cremes de ovos e finas massas. Era muito comum a criação de galinhas, então a disponibilidade de ovos seria natural ao camponês comum.

Leite & manteiga são ingredientes que nem todos os camponeses teriam acesso direto, por não terem gado, mas podiam comprar à leiteira e bater em casa até formar a manteiga. Lembrando que o leite tirado diretamente da vaca é rico em gordura, muito diferente daquele comprado em caixinha hoje. É um ingrediente dispensável, pois serve como líquido, intercambiável com bebida alcoólica ou sumo. A manteiga poderia ser comprada já pronta às vendedoras ambulantes “mulheres da manteiga”, que competiam com a manteiga importada da Inglaterra.

utensilio para fazer manteiga antigo
matança do porco na ilha da madeira

Antes da era dos óleos vegetais, a banha de porco era principal fonte de gordura utilizada em território doméstico, portanto se uma família tivesse um porco para matar, teria banha e vários sub-produtos, como toucinho e carne salgada, importantes para a nutrição do ano inteiro. Talvez até pudesse dispensar o uso da manteiga, em caso de falta.

vinho madeira na garrafa e na taça

O Vinho Madeira faz a vez do ingrediente líquido que a receita precisa. Você poderá encontrar versões com vinho, rum, aguardente ou cerveja. Com certeza, este vinho não era aquele engarrafado de loja, mas sim o envelhecido feito em casa, assim como as demais bebidas. O álcool evapora no cozimento, portanto não precisa se preocupar em servir bolo de mel a uma criança ou mulher grávida!

frutas cítricias

Limão & Laranja: Estes dois componentes são polêmicos. Há quem coloque os sumos, há quem coloque somente as raspas. O limão original da receita é o siciliano, pois o taithi do Brasil é referido como lima em Portugal (nós que temos costume de falar errado mesmo, de limão ele não tem nada haha).

Pobre x Rico

           O que difere as duas versões do bolo de mel pobre ou rico é a maior presença de frutos secos, que até hoje são alimentos caros. As nozes, passas, amêndoas e cidra remontam uma prática muito antiga romana: para sobreviver a invernos rigorosos e plantios falhos, os romanos desidratavam suas frutas, ricas em açúcar, servindo de refeições cheias de energia em porções reduzidas. Os frutos secos tinham significados especiais, eram usados como decoração, dados de presente e por isso, seu consumo está totalmente ligado a abundância do Natal. Tendo isso em mente, eu criei uma decoração super farta para o nosso bolo de mel, que eu entitulo de “especial”  

bolo de mel especial e embalagem

The Victorian Way

           Receitas com frutos secos na era vitoriana eram imprescindíveis. Uma receita inglesa muito parecida com o bolo de mel é o Christmas Pudding, que no próprio nome já indica seu período de preparação. O que difere os pratos é a forma de cozimento. Antigamente o Christmas Pudding era deixado em banho-maria por horas dentro de um tecido fino (tipo musselina), embebido em álcool ou sumo cítrico. Após o cozimento, era pendurado e secado por dias, para intensificar seu sabor. Na era vitoriana, século XIX, esse tecido foi substituído por uma forma. É preferencialmente servido quente, e às vezes até flambado, ao contrário do bolo de mel, mas seus aromas e e intensa presença de frutas confere sabores muito similares.

chistmas pudding. photograph by Maja Smend
christmas pudding hanging old style
christmas pudding being flamed

All S-P-I-C-E-S

            Tão cobiçadas, que levaram os navegadores portugueses à descoberta de inúmeras colônias! Vindas das Indias, as especiarias são, em minha opinião, os ingredientes mais incríveis da receita, que definem seu sabor natalino. Antigamente a forma mais usual seria encontrar a noz moscada em grão, o cravo em flor e a canela em pau, e triturá-las no pilão no momento da confecção do bolo. As versões modernas que utilizam as especiarias já moídas correm grande risco de adulteração, além do gosto em nada se assemelhar a intensidade daquelas moídas na hora. Você já deve ter percebido que o bolo de mel não atrai formigas…! Esta é uma ação do cravo, que repele as danadinhas.

a NOSSA Erva-doce

semente de funcho

O Funchal, capital da ilha, não tem este nome a toa! Disse Gaspar Frutuoso (1522-1591) em Saudades da Terra“(…)Funchal, a que o capitam deo este nome, por se fundar em hum valle fermoso de singular arvoredo, cheyo de funcho até o mar”. Segundo Frutuoso, terá sido o próprio João Gonçalves Zarco que deu o nome de Funchal à capital do arquipélago. Portanto, o funcho é a erva-doce endêmica da Madeira. Por coincidência (ou não) é também o tipo cultivado no Brasil. Aquela erva-doce pequenina, a qual estamos mais acostumados, é importada da Turquia.

O melhor momento para experimentar:

           Não se deve comer o bolo de mel assim que sai do forno, pois enquanto quente, não houve tempo suficiente para maturar e intensificar o sabor das especiarias. Se estiver com muita vontade, pelo menos espere arrefecer, mas o ideal é deixá-lo pelo menos 3 dias na sua despensa (embrulhado em papel manteiga dentro de lata, saco plástico ou pote). No Brasil damos 3 meses de validade, mas na Europa, este bolo tem a fama de ser preparado e saboreado 1 ano depois, dando tempo de sobra para o sabor estar totalmente apurado. Não é a toa que o bolo de mel é uma iguaria, um bolo para degustar em pequenos pedaços…!

O que eu tenho a ver com tudo isso?

Não sou chef, nem formada em gastronomia, mas tenho o prazer de continuar esta tradição na terra onde os meus avós decidiram construir suas vidas: Brasil. Minha mãe, através da receita que nos foi passada por dona Vitorina, sua comadre, cozinhava este bolo para oferecer no Natal desde os anos 90. Conforme o tempo passou, também começou a vender. Observei que existia a grande possibilidade de transformar num negócio formal, pois eu já vendia bolos (cupcakes) na escola. Então em 2019, designer como sou, e na época formando da faculdade, desenhei o logo e dei o nome que nos faltava para oficializar o empreendimento: Bolo de Mel da Vilhoa. Com H, pro brasileiro ler certo!

Experimente o nosso bolo de mel! Temos disponíveis no site sob encomenda, basta clicar nas imagens ou nos botões:

vilo madeirense de óculos e lenço

          Caso você queira pegar alguma informação daqui, e transformar em conteúdo para suas redes sociais, peço para que faça referência a este blog ou a autora! Este artigo é um compilado de apontamentos mentais que juntei ao longo dos meus estudos sobre a Madeira. Toda informação sublinhada é definitivamente um achismo meu baseado na lógica. As fotos dos meus produtos foram tiradas pela Bianca Oliveira. Obrigada e Bem Haja!

Neste VLOG mostro como era nosso processo de produção do bolo de mel em 2020:

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